DEMOCRACIA  PARTICIPATIVA e o poder local:

a experiência de Porto Alegre.

Raul Pont

 

A análise da experiência de democracia participativa em Porto Alegre requer, a titulo de esclarecimento, a informação de que a proposta  estava  incorporada ao  programa   partidário na conquista  do governo municipal  em 1988  mas possui  um  caráter  muito  empirico pois  não  tínhamos, no Brasil, experiências   vividas  e consolidadas sobre essa concepção  de democracia e  participação  popular.

Tínhamos o compromisso e a vontade  política de  ir além  da  democracia  representativa e a consciência de que seria um aprendizado no qual os participantes, os cidadaòs  de porto alegre, seriam protagonistas ativos ,conosco, na organização  deste processo.

Estavam muito presentes,também, os limites de uma  experiência  de caráter local num pais com alto grau de concentração  e centralização do poder político.

Possuíamos, no entanto, a convicção de que do ponto de vista  tático (democratização, transparência, eficiência administrativa) e estratégico(inversão de prioridades,nova relação da sociedade e o Estado, predomínio de novos atores sociais) a construção de uma democracia participativa era uma necessidade para nosso governo.A  existência de uma base legal e a legitimidade da vitória  eleitoral nos  empurravam para a ousadia  de buscar  a participação popular.

                

A Constituição brasileira de 1988  havia estabelecido em seu artigo 1º, parágrafo único, que: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

  A  nova carta constitucional incorporava, pela primeira vez,no Brasil a idéia do exercício direto da soberania popular.

Além disso, repetia  a concepção clássica dos Estados Modernos de que “o poder emana do povo”, conceito teórico presente ao longo da nossa experiência republicana, mas quase sempre ausente na vida política real do país, marcada ao largo deste século por governos oligárquicos excludentes e longos períodos de regimes militares autoritários e ditatoriais.

O fato do Estado brasileiro encerrar essa contradição entre a concepção dos Estados constitucionais modernos e até “avançar” na declaração do exercício direto da soberania popular com uma história real pouca democrática não é muito distinto do avanço das conquistas democráticas em outras partes do mundo.

O liberalismo que marcou os primeiros regimes constitucionais nunca teve a iniciativa dos avanços nas conquistas sociais. O voto censitário, a ausência do sufrágio feminino, as dificuldades e até proibições, explícitas e implícitas, ao funcionamento e representação dos partidos anticapitalistas sempre deram aos regimes políticos liberais um caráter oligárquico e elitista.

No Brasil e em outros países, isso foi agravado pela cultura de quatro séculos de latifúndio escravocrata, pelo clientelismo,pelo patrimonialismo  pela  negação do trabalho e por longos períodos ditatoriais.

Assim, o avanço das lutas e conquistas democráticas não foi e não é um processo linear. Ao contrário, sempre foi marcado por conflitos e contradições, mesmo em seus primórdios liberais.

As concepções “igualitárias” de J.J. Rousseau e as concepções “possessivas”, “proprietárias” de J. Locke, por exemplo, expressavam interesses sociais distintos e conduziram a tendências bem diferentes na construção do Estado capitalista.

Ainda que ambas partissem do direito natural, fundamento do pensamento liberal, para  J.J. ROUSSEAU a idéia da liberdade estava indissociada da igualdade como condição humana.

O pensamento “proprietário” de J. Locke, predominante nas sociedades capitalistas, sustentava que o direito à liberdade era um dos fundamentos do direito à propriedade e ao Estado cabia defendê-la, através do poder supremo do Parlamento.

Com isso não queremos fazer uma divagação teórica mas situar as origens do debate sobre a delegação do poder. Compreender que não é um debate recente e registrar que as diferentes explicações teóricas e ideológicas desse processo expressam interesses sociais distintos ao longo da história e tem, até hoje, conseqüência diversas no desenvolvimento político da humanidade.

Radicalizar a leitura da Constituição brasileira de 1988 onde “o poder emana do povo” é retomar o debate no qual J.J. ROUSSEAU afirmava que ao ato no qual se realiza o contrato da sociedade política, onde se convenciona um governo, existe um momento anterior que é aquele em que “o povo é povo” e esta condição é a convenção primeira, aquela soberania que para ele não podia ser transferida, delegada ou dividida.

Essa concepção se era irreal ao mundo que o cercava, prenunciava o grande desafio para qualquer avanço democrático no interior das concepções liberais.

Como manter a soberania popular? Ou como controlar e diminuir as formas de delegação para que se mantenha a soberania popular? Esta questão continua atual, desafiando-nos.

A partir das grandes vertentes liberais desdobraram-se sistemas políticos representativos com características próprias, mas alicerçados na visão do “liberalismo proprietário”. São os casos das repúblicas ou monarquias constitucionais parlamentares onde a delegação pelo voto ao Parlamento unifica as funções legislativa e executiva, mas também, das repúblicas presidencialistas, onde Executivo e Legislativo tem competências e critérios  eletivos distintos.

Esse processo histórico demonstrou de forma cristalina que o liberalismo não foi e não é sinônimo de democracia.

Durante os séculos XIX e XX, o direito à organização sindical, ao partido político, ao sufrágio universal foram conquistas duramente alcançadas, bem como as lutas pela jornada e as condições de trabalho. Este reformismo social sustentou a política do Estado de Bem Estar Social na Europa e a relativa proteção trabalhista no Brasil, no período populista da metade do século.

As novas contradições e relações de classe produziram novas concepções político-ideológicas de mundo e das relações entre a sociedade e o Estado.

O pensamento socialista, principalmente em sua concepção marxista, fez a crítica as concepções liberais, afirmando o caráter de classe do Estado e sua subordinação aos interesses predominantes na sociedade na esfera da produção, bem como a critica de que a igualdade do Estado de Direito não ultrapassa a igualdade jurídica do cidadão tentando encobrir a real desigualdade social existente na sociedade.

Mesmo sem desenvolver uma concepção de Estado socialista, o pensamento marxista teorizou e sistematizou experiências concretas como a Comuna de Paris. Buscando extrair daí lições de uma nova relação da sociedade com o Estado.

A efêmera experiência da Comuna de Paris e as experiências com base nos Conselhos (sovietes), nos primeiros anos da Revolução Russa, retomaram a questão da representação e delegação do poder, buscando superar a igualdade jurídica formal e o distanciamento do poder político da maioria da população nos regimes de representação liberal e parlamentar clássica.

Os conselhos (sovietes) mesmo com graus de delegação, buscavam garantir ao produtor/trabalhador, o papel simultâneo de legislador por meio de uma estrutura com base na produção, nos serviços e nas Comunas através de conselhos locais, regionais e da união.

A experiência soviética não sobreviveu à guerra civil e ao autoritarismo-burocrático que prevaleceu na luta interna da União Soviética nos anos 20. Aos poucos,o centralismo, o Partido único, o autoritarismo e a burocratização anularam qualquer possibilidade de uma nova democracia socialista, a pesar da estatização dos meios de produção.

O “socialismo real” do Leste Europeu e da China e seus seguidores menores sufocaram este debate no campo da esquerda ao longo do século XX. A questão da democracia, indissociável do socialismo, deixou de ser um elemento estratégico nos programas da maioria dos partidos comunistas,  substimando-a  a interesses circunstanciais e táticos.

O predomínio das experiências social-democratas ou de democracias burguesas liberais consolidou a visão da democracia representativa como ápice do avanço político da humanidade.

Na maioria dos países de democracia liberal, entretanto, o sistema de representação vive um processo de crise de legitimidade, expresso na abstenção eleitoral, na apatia e pouca participação político-social, e mais recentemente, agravado pela dificuldade dos países capitalistas desenvolvidos manterem as reformas e avanços do “Estado do Bem-estar Social”.

No mundo subdesenvolvido, essa  legitimidade sempre foi pequena em função dos regimes ditatoriais e do autoritarismo populista, mas, principalmente pela incapacidade dos governos e do sistema resolverem, minimamente, a brutal desigualdade social e regional nestes países.

A pouca legitimidade reside, também no processo de burocratização e elitização das administrações e parlamentos, nos sistemas eleitorais que impedem e/ou distorcem a representação popular com barreiras de acesso ou mecanismos de voto distrital que impedem o respeito e o direito á proporcionalidade das minorias, a diluição programática e falta de coerência entre discurso e prática dos eleitos , a falta de controle dos eleitores sobre os eleitos. No Brasil, isto é ainda mais agravado pelas trocas de partido sem perda de mandato.

Há, porém, outro fenômeno em curso na América Latina, no Brasil em especial, que não tem paralelo na Europa ou em outros centros capitalistas. É o rápido crescimento populacional e acelerado processo de urbanização. Há 30 anos a população brasileira era de 90 milhões de habitantes. Após uma geração a população quase dobrou, hoje são 170 milhões. Há 50 anos, dois terços da população era rural. Hoje, 80% dos brasileiros vivem em centros urbanos.

Esse processo trouxe profundas mudanças no comportamento político-partidário no país. A luta pelo acesso aos serviços básicos necessários para a vida urbana e para o cotidiano de milhões de pessoas (infraestrutura viária, saneamento básico, saúde, educação, moradia etc.) modificou o comportamento das pessoas e alterou, radicalmente, o papel e as demandas que são exigidas do poder local.

Nos últimos quinze anos o poder central no Brasil trilhou um caminho oposto a esta realidade social.

O discurso e a prática neoliberal apontaram como política para sair do subdesenvolvimento o esvaziamento das funções sociais do Estado, a privatização das empresas e dos serviços públicos essenciais, a abertura submissa do comércio externo e da remuneração dos lucros e dos serviços da divida às grandes empresas e credores internacionais, o favorecimento da especulação financeira e  as demissões massivas de trabalhadores . Enfim, o descaso crescente com as necessidades da população.

Por essas razões, a população voltou-se para participar, cobrar, exigir mais dos governos locais e estes vem assumindo novos encargos, mais competências de serviços públicos sem que ocorram as devidas mudanças na distribuição do conjunto dos tributos arrecadados no país.

Atualmente no Brasil, apenas 14% da receita total disponível permanece nos municípios, enquanto 63% ficam nas mãos do governo federal. Aos Estados, também responsáveis pela educação, saúde e segurança publica, cabe os restantes 23% do bolo tributário.

Nestas circunstâncias é que nossa experiência de democracia participativa há doze anos em Porto Alegre adquire sentido e importância. Conscientes dos limites das experiências locais e de que elas devem estar integradas num projeto maior que pense o país numa nova concepção de mundo, não podíamos cruzar os braços e esperar que todos os problemas teóricos e estratégicos do movimento socialista estivessem resolvidos para atuarmos no município.

Construímos, governo e movimento popular, uma rica experiência participativa na contra-mão do projeto neoliberal.

A vitória da Frente Popular, em 1988, resultado do crescimento do PT e do acúmulo das lutas dos movimentos sociais dos anos 80 e marcada por um programa comprometido com os interesses concretos das classes trabalhadoras, nos conduziu a estabelecer novas prioridades para o governo local. Para nós, o mais importante é que essa inversão de prioridades ocorresse  através da participação popular.

Para que os recursos públicos fossem gastos e investidos de acordo com a necessidade da população nada melhor do que começar alterando profundamente as formas de decisão.

A organização do Orçamento Participativo através de estruturas regionais e temáticas, nas quais a participação é pública, direta e deliberativa foi o carro-chefe de um conjunto de outra formas de incentivo à cidadania incidir diretamente sobre o governo. Os Conselhos Municipais, organismos consultivos setoriais que estavam desativados ou com pouco funcionamento, transformaram-se, também, em importantes instrumentos de formulação e de definição de políticas públicas.

Ao longo desses doze anos -agora ratificados para mais um mandato da Frente Popular- uma verdadeira revolução operou-se nos gastos públicos. A partir da crescente participação popular –no primeiro ano menos de um mil, nos dois últimos anos vinte mil pessoas- os gastos e investimentos municipais foram sendo alocados, prioritariamente, de acordo com a hierarquia decidida pela população.

Nada mais ilustrativo do que a comparação entre as despesas e investimentos nos primeiros anos nas áreas sociais da saúde, educação, assistência social e moradia, com os últimos anos.

Em 89/90 gastava-se R$91 milhões (23% do orçamento)- em valores atuais- nessas áreas. Em 99/2000, esses valores elevaram-se para mais de R$360 milhões (37%do orçamento). Mais  de quatro vezes, entre o inicio e o fim da década, nos gastos e investimentos sociais. Ou seja, a presença e a decisão popular foram fundamentais para este resultado que cresceu mais do que o Orçamento como um todo, que em valores constantes, mais que dobrou no mesmo período, graças ao fim dos incentivos, das anistias fiscais e de uma nova política  tributária com base na progressividade e justiça social.

Pela reivindicação e mobilização, os Conselhos Municipais impuseram políticas públicas na área da criança e da adolescência, na área da saúde, da educação, determinando mudanças qualitativas e quantitativas nos equipamentos públicos ou nos convênios com as entidades comunitárias.

Um exemplo. Na metade do segundo mandato ainda tínhamos pouquíssimos programas com as entidades comunitárias que prestam serviços para as crianças e adolescentes. Hoje, entre creches e serviços de apoio sócio educativo estão integradas mais de 160 entidades comunitárias que recebem recursos públicos, atendendo milhares de crianças e jovens, por decisão da população.

O mesmo pode-se dizer dos equipamentos de saúde ou no crescimento na rede municipal de ensino, que nos colocou na condição de capital mais alfabetizada do país.

O que a experiência nos ensinou nestes doze anos é que a questão democrática é central em qualquer processo de enfrentamento ao neoliberalismo dominante. Por seu potencial mobilizador e conscientizador, a democracia participativa permite compreender o Estado, geri-lo e estabelecer um efeito demonstração para outras lutas políticas.

Essa experiência recoloca o tema dos limites e insuficiências do sistema representativo e a importância de retomarmos o grande desafio sobre como construir a democracia participativa, diminuindo as instâncias de delegação e a burocratização que se consolidam com os sistemas simplesmente representativos.            

Por isso, a experiência do Orçamento Participativo tem sido marcada por algumas características constitutivas que lhe dão grande força de referência. 

A participação popular, universal, direta através das instâncias regionais e temáticas em que a cidade está dividida é a primeira delas. Outra é a ação direta, a prática direta da cidadania reunindo, discutindo, aprendendo a decidir coletivamente, a organizar reuniões e hierarquizar reivindicações. O terceiro elemento é a auto-organização da população. A defesa de que a espontaneidade, a criatividade e a participação não fiquem limitadas ou subordinadas a leis votadas pelas Câmaras Municipais.

Defendemos essa tese contra as investidas de deputados e vereadores dos partidos conservadores que acionam até o Poder Judiciário tentando caracterizar o processo como ilegal e contrário à tradição representativa. Não admitem que a população possa criar suas próprias regras de participação que podem ser mudadas a qualquer momento pelos próprios participantes.

O Regimento Interno do Orçamento Participativo construído e aperfeiçoado ao longo desses doze anos, revela que a população participando e decidindo pode construir regras mais justas, mais solidárias, mais objetivas em relação as carências sociais e de forma mais democrática na definição do gasto público.

Num mundo em que os países subdesenvolvidos perdem cada vez mais sua soberania nacional, em que os grandes organismos internacionais como a OMC, o FMI e o Banco Mundial são instrumentos de corporações imperialistas e de tecnocratas dos governos, nos quais o povo não vota nem influencia, a soberania popular e a soberania de cada cidadão restringem-se cada vez mais ao poder local e regional.

Resistir, defender e fazer avançar experiências que não abdicam da soberania individual, da soberania local, nos fortalecem e nos garantem sintonia com as lutas democráticas e os interesses materiais comuns da maioria da população.

Esta é a tendência das grandes cidades, dos grandes aglomerados urbanos que necessitam atender e são reivindicados por milhões de habitantes em serviços e equipamentos e isto não se faz sem a participação do cidadão e o controle local e regional desses serviços e obras.

Nossa vitória eleitoral no Rio Grande do Sul permitiu que essa experiência fosse estendida em todo o Estado, junto aos quinhentos municípios para elaborar e decidir o Orçamento e o Plano de Investimento Estadual. Por estas razões é que podemos afirmar que experiências como o Orçamento Participativo e outras formas de democracia participativa retomam o debate democrático histórico da humanidade recolocando-o em um novo patamar, pela enorme potencialidade das novas formas de comunicação e informação contemporâneas e porque a questão democrática para os socialistas está  livre agora do viés burocrático e do autoritarismo das experiências do leste europeu.

O neoliberalismo por sua excludência, exploração, e autoritarismo é incompatível com a democracia e a soberania popular. No Brasil, as Medidas Provisórias que o Presidente tem o poder  de     decretar tornaram o Congresso Nacional um simulacro de sistema representativo, conivente com a perda da Soberania Nacional e a ilegitimidade política.

A democracia participativa que construímos há doze anos, agora reafirmada mais uma vez pelo voto popular em Porto Alegre, hoje se reproduz em quase duas centenas de municípios no Brasil.

Certamente não responde a todos os problemas do país por seus limites municipais e regionais, mas seu método de funcionamento prova que é possível, como fazemos em Porto Alegre, ter políticas de inclusão social, de combate ao desemprego, de reajustes bimestrais de salário conforme a inflação, de manutenção de empresas públicas que são superavitárias e funcionam sob controle democrático, de equilíbrio fiscal sem demissões de funcionários, de transparência absoluta, com ética e sem corrupção, e principalmente, de crescente participação popular nas formas de decisão e construção das políticas públicas que desenvolvemos na cidade.

Nossa participação nas redes internacionais de cidades, nos Seminários Internacionais sobre Democracia Participativa e a realização do Fórum Social Mundial nos tem demonstrado que não estamos sozinhos e, que não são poucos  os que acreditam que outro mundo é possível. Vamos construí-lo.

 

Raul Pont

Professor universitário, membro da Direção Nacional

do PT  e  Ex.  Prefeito De Porto  Alegre.

Porto Alegre, 2001.