Informe sobre o Brasil

Tárzia Medeiros, militante da Marcha Mundial das Mulheres e do PSOL

 

            Este informe tem o objetivo de situar em que conjuntura encontra-se mergulhado o Brasil desde a eleição do Presidente Lula, e quais têm sido as repercussões desse fato para a esquerda brasileira e, em especial, para as(os) militantes identificadas(os) com a DS (Democracia Socialista) e com a IV Internacional.

 

01) Sobre o governo Lula e sua orientação social-liberal

          Apesar da ampla aliança construída com a burguesia brasileira já desde a campanha eleitoral, a eleição de Lula suscitou muitas esperanças, que foram se frustrando no decorrer do seu governo. Com a composição do governo e da sua base aliada, e com a maior parte das políticas anunciadas desde o início, ficou nítida a adoção de uma orientação social-liberal. A presença de representações das classes populares e dos movimentos sociais nessa composição, ao contrário do que alguns argumentam, não consegue e não conseguirá estabelecer uma disputa nos rumos e na orientação geral do governo. Isso se dá porque a ocupação das posições centrais, com o predomínio da burguesia nos lugares-chave da área econômica, condiciona o conjunto do governo a executar uma linha neoliberal. Um exemplo claro disso é a total subordinação da política econômica ao FMI e ao capital financeiro.

Além da composição do governo e da sua base aliada, a opção de Lula em privilegiar os interesses da burguesia torna-se evidente com a prioridade dada à aprovação das Reformas (ou Contra-reformas). Assim como a Reforma da Previdência, aprovada em 2004, todas elas estão submetidas ao receituário neoliberal de ajuste ou supressão de direitos da classe trabalhadora, prevendo também o desvio ou extinção do investimento público em políticas sociais. A prioridade dada ao "agronegócio", em detrimento da reforma agrária e da agricultura familiar, foi definitivo para a liberação do cultivo e da comercialização dos transgênicos. Na política internacional também não tem havido contradição com essa linha neoliberal do governo. O envio das tropas brasileiras para o Haiti, numa parceria com a política imperialista e intervencionista dos EUA na América Latina, deixa isso claro.

Diante desse quadro, ainda nos deparamos com o argumento, por parte de alguns defensores de Lula, de que há "coisas boas" sendo feitas. Na nossa análise, os pontos considerados positivos do governo jamais terão o mesmo peso e nem poderão compensar as "coisas ruins" que estão sendo implementadas. Aliás, as supostas "coisas boas" são apenas algumas concessões para manter a influência sobre a esquerda e os movimentos sociais.

Portanto, a questão fundamental colocada para as (os) militantes socialistas brasileiras(os) é a caracterização do Governo Lula e as relações que se deve manter com ele. Este não é um governo do qual militantes socialistas possam participar, ou manter relações de parceria, sem entrar em choque com suas convicções fundamentais.

 

02) A esquerda brasileira e os movimentos sociais

É necessário dizer que a situação brasileira atual favorece a uma fragmentação da esquerda, ao passo que os movimentos sociais atravessam uma grande crise. A capacidade do Governo Lula de agir por dentro dos movimentos sociais e das forças políticas mais à esquerda no país, lançando mão da sua história e das ilusões que ainda suscita, é a grande responsável por essa crise. É bem verdade que um setor importante dos movimentos sociais já se define como oposição a Lula ou, pelo menos, a algumas de suas políticas centrais. A formação de uma ampla oposição às contra-reformas teve início a partir da Reforma da Previdência e vem se ampliando com os projetos das reformas sindical, universitária e trabalhista. Entidades como o ANDES e uma parte importante da CUT (Central Única dos Trabalhadores) compõem essa oposição.

Por outro lado, há uma parte importante da direção de alguns movimentos que rendeu-se à cooptação e apóia o governo Lula, mesmo avaliando que ele não defende mais os interesses da classe trabalhadora. Essa cooptação é feita, principalmente, através do oferecimento de cargos aos dirigentes e de instrumentos e estrutura para fazer política.

Há ainda um terceiro setor do movimento social que mantém uma certa ambigüidade. O caso mais típico é o do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Os seus dirigentes declaram que a Reforma Agrária do governo Lula é até pior do que a do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso (FHC); condenam e apontam a política econômica como impeditivo para a execução de uma verdadeira reforma agrária. Apesar dessas críticas, o MST ainda repete que "Lula é nosso amigo".

Portanto, o governo Lula conseguiu anular, em grande parte, o potencial de luta dos movimentos sociais, e foi por isso que ele pôde ir além do governo FHC na contra-reforma da Previdência. Sua chegada ao poder alterou a correlação de forças entre as classes sociais, tornando-a desfavorável aos interesses populares e favorável aos interesses burgueses.

Sobre a esquerda de uma forma mais geral, podemos citar o surgimento de um bloco de esquerda parlamentar em 2003, formado inicialmente por oito parlamentares petistas e que se ampliou para quinze deputados federais. Esse bloco parlamentar votou contra o não-aumento do salário mínimo em 2004 e seu elemento-chave é o compromisso militante de votarem sempre a favor dos interesses populares, mesmo se isto implicar ficar contra a disciplina do PT, o que deverá provocar choques cada vez mais fortes  com o governo e com a direção do PT.

Em relação ao PT, é inquestionável a sua guinada ao social-liberalismo e a sua total subserviência ao Governo Lula. A expulsão de parlamentares petistas que se "rebelaram" contra as políticas neoliberais do Governo Lula (dentre eles, a companheira Heloísa Helena) é uma demonstração dessa subserviência.Com a expulsão dos(as) parlamentares do PT e com a consolidação da natureza neoliberal do Governo Lula, tornou-se necessário construir uma alternativa para aquelas(es) que não queriam abrir mão de suas convicções e que pudesse ser, utilizando uma expressão da companheira Heloísa Helena, "um porto seguro para a militância socialista". Iniciou-se, então, o movimento de formação da Esquerda Socialista e Democrática, que teve como desdobramento o movimento pela construção do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, do qual fazem parte várias(os) companheiras(os) da DS e da IV Internacional.

Muitos militantes da esquerda socialista e dos movimentos sociais compartilham conosco (que estamos no PSOL) da avaliação de que é necessário fazer oposição ao Governo Lula e de que o PT já perdeu o seu caráter socialista. Estamos empenhados em construir, com esses e outros setores, uma resistência mais unitária e mais ampla possível contra as contra-reformas e outras medidas neoliberais do governo. Com esse objetivo, estivemos lado a lado  com militantes petistas durante a manifestação do último dia 25 de novembro, em Brasília, contra a contra-reforma da Previdência. Portanto, a polarização existente hoje, na esquerda, não se dá entre militantes do PT e militantes do PSOL, mas sim entre militantes que se opõem às medidas neoliberais de Lula e militantes que as aceitam.

 

03) Crise e reconstrução da DS: existe vida fora do PT

Desde o seu surgimento, em 1979, a DS jamais atravessou uma crise semelhante à que vive agora. Essa crise se deve à assimilação de toda a guinada petista por parte da maioria governista da direção da DS, que se recusa a fazer o debate honesto sobre a real e atual caracterização do PT e do Governo Lula. O argumento de que a DS é uma "Tendência do PT" e, portanto, todos(as) que se desfiliaram do PT e estão em outro partido estão fora dela, funciona como um subterfúgio para fugir do debate. Era possível definir-se desta maneira enquanto o PT era um partido globalmente progressista e era possível lutar para construí-lo como partido revolucionário. Mas, com a consolidação da linha social-liberal dentro do partido, a linha "tendência interna do PT" passou a ser insustentável, pois entra em choque com as definições programáticas da DS como corrente socialista e revolucionária. Além do mais, essa discussão jamais poderia ser feita apenas no plano nacional, tendo em vista a identificação da DS com a IV Internacional. Por esse motivo, a reunião do Comitê Internacional da IV Internacional, realizada em fevereiro de 2005, não aceitou esta exclusão e reconheceu a existência de uma "corrente da DS" no PSOL.

Há, portanto, uma divisão dentro da DS: um setor de esquerda (que inclui petistas contrários à participação no governo Lula e pessoas que constroem o PSOL) e um setor governista de direita (que se adapta ao PT social-liberal), além de outros setores que ainda não têm uma posição clara. O setor de direita da DS é majoritário no momento. Essa divisão já havia se anunciado desde a votação da Reforma da Previdência em 2003, quando a bancada de parlamentares da DS (deputados e as senadoras) votou em quatro posições diferentes: a favor com e sem declaração de voto, abstenção e voto contrário. A mesma divisão voltou a se repetir na votação do salário mínimo em 2004. A formação do Bloco de Esquerda Parlamentar, que conta com a participação de cinco dos sete deputados da DS, foi duramente criticada pela maioria da direção da tendência, assim como os compromissos assumidos pelo bloco. Entre os/as militantes da DS que estão nos movimentos sociais, também há uma divisão quanto ao papel que eles devem cumprir frente ao Governo Federal. O caso do movimento sindical é o mais nítido, pois os representantes da DS na executiva da CUT, que pertencem ao setor governista da direção da DS, se posicionaram a favor da reforma sindical do governo, quando todas as outras correntes da esquerda do PT e até mesmo o PC do B já se posicionaram contrários à referida reforma.

A Conferência Nacional da DS, realizada no último dia 21 de abril, foi de apenas uma parte da tendência, pois os/as militantes que estão no PSOL não participaram. Fica evidente, portanto, a crise pela qual passa a DS e a necessidade de reconstruí-la como corrente marxista-revolucionária. Ao contrário do que aconteceu no PT, onde as raízes de independência política de classe e a orientação socialista foram sendo perdidas ou transformadas em retórica vazia, as raízes marxistas-revolucionárias da DS continuam fortes – pelo menos para uma grande parte dos/das seus/suas militantes. O processo de reconstrução, apesar de ser difícil, poderá ser feita junto com setores da esquerda socialista que estão dentro e fora do PT, pois os riscos de fragmentação nos recomendam esse caminho. Nós, militantes da DS que estamos construindo o PSOL, estamos contribuindo para essa reconstrução. Formamos, inclusive, uma tendência do PSOL – a tendência Liberdade e Revolução (LR) – que reúne militantes da DS e militantes que têm outras origens e tradições programáticas. No interior da LR, constituímos o coletivo DS-IV Internacional.

As desfiliações, dissidências e o número de pessoas descontentes com o PT aumentam a cada momento. No entanto, uma parcela dessas pessoas não vêem na construção do PSOL uma alternativa ao PT. Não devemos alimentar a ilusão de que o PSOL poderá ocupar todo o espaço à esquerda que o PT abandonou, mas ele poderá ocupar uma parte substancial do espaço de esquerda que está vazio. O PSOL não deve ser avaliado apenas pelo que já é, mas também pelo que pode vir a ser quando muitos companheiros e companheiras assumirem sua construção. É necessário viabilizar uma alternativa à reeleição de Lula em 2006, que questione a pseudo-polarização de Lula  com o candidato igualmente neoliberal do PSDB. É necessário construir a resistência e fazer avançar as lutas nos movimentos sociais. O PSOL não é a resposta e a saída completa de que precisamos; mas é uma parte indispensável da resposta e aponta para uma aposta possível de se concretizar.